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Comunicação de Isabel Balbino - Igreja Serva e Pobre

[Continuação]


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Sou de uma congregação em que o jeito de ser de Maria é parte do nosso carisma. Entre o legado que recebemos de e sobre Maria saliento este: “Sua mãe guardava todas estas coisas no seu coração” (Lc 2,51). Realço o facto de “estas coisas que Maria guardava, se referirem a uma vivência dos acontecimentos e não só à retenção de um aspecto particular destes (como a informação verbal). Isto pode parecer uma observação menor mas talvez não seja. 
Quando andava no liceu, numa das aulas de português, aprendemos o que era o significante (a palavra - caracteres ou som – com que designamos algo) e o significado (o objecto/ experiência a que o significante se referia). Estou em crer que esta diferença é uma questão importante. Pergunto-me se, no tempo de Jesus, esta não era uma das suas grandes chamadas de atenção, amiúde dirigida aos conhecedores da Palavra (Lei). A parábola do Bom Samaritano (Lc 10,29) fala de um sacerdote e de um levita cujo conhecimento da Lei (significante!) era exímio, mas foi um samaritano que agiu em conformidade com ela (significado). 
Quando guardo, guardo o quê? Significante, significado ou ambos. A linguagem oral e escrita é uma das grandes conquistas e bênçãos da humanidade. Assiste-nos na riqueza incomparável da comunicação com todos os seus frutos. Mas uma comunicação em que o código se serve a si mesmo em vez de servir a vivência é um contra-senso. S. Paulo di-lo eloquentemente em 2Cor 3, 1-6 quando enfatiza: “A nossa carta sois vós”. 
Quando faço um teste escolar, por exemplo, posso ler dezenas de vezes uma definição até a decorar. Quando faço uma prova desportiva, posso repetir dezenas de vezes um exercício até ficar hábil. E quanto ao Reino, ao Evangelho, ao Amor? São dezenas as vezes que repito a experiência/ vivência até que fique guardada? É interessante que, até ao nível fisiológico, a natureza não confunde o que guarda. Num exame de RMN funcional, onde vemos o nosso cérebro em acção, se pedirmos a uma pessoa para pronunciar uma palavra (ex. alegria) as áreas predominantemente activas do cérebro serão as da linguagem, mas se pedirmos à pessoa para se recordar de uma experiência alegre o cérebro activará, na maioria dos casos, um padrão muito mais complexo. Para o nosso cérebro palavra e vivência estão relacionadas nas não coincidem entre si.

Finitude
Esta é uma palavra que requer algum cuidado na medida em que pode ser entendida de muitas maneiras. Vou tentar estabelecer algumas coordenadas e situá-la no ponto onde creio que transmite o pretendido. 
A primeira tonalidade da finitude que quero evocar é um pouco ‘dramática’. Temos a consciência de que todos vamos perder (ou já perdemos), ao longo da vida, pessoas que conhecemos e amamos, agilidade, força, papel interventivo, saúde, autonomia e, por fim, a própria vida orgânica… Não se trata de se mas de quando acontecerá! Não pretendo ser alarmista ou pessimista mas apelar à paz com a existência nas suas fases e ciclos. Há um poema no Eclesiastes que sempre me pacifica: “Para tudo há um tempo debaixo do céu…” (Ecl 3). Francisco de Assis cantou a irmã vida e a irmã morte e isto não fez dele um santo soturno. Pelo contrário, Francisco é conhecido como santo da alegria capaz de cantar, tocar e dançar. Trovador de Cristo.
A segunda tonalidade da finitude é complementar à primeira. Muitos autores referem que, no fim de uma coisa outra começa. Lavoisier tem a célebre máxima: “Nada se perde tudo se transforma”. A finitude não traz uma cessação mas uma transformação. A questão é que muitas vezes não o percebemos. Por exemplo, nas estações do ano tendemos a atribuir um papel activo à Primavera (dinamismo visível e, por isso, valorizado) e inactivo ao Inverno (dinamismo invisível e, por isso, subestimado). Porém, quem estudou biologia sabe a intensidade laboriosa da natureza no Inverno. Ambas as estações são profundamente dinâmicas, embora com dinamismos distintos. Outro exemplo: uma mãe, no dia que recebe a notícia que é avó fica com um dilema: toma o papel de mãe (no qual tem profunda experiência mas que colidirá com a mãe da criança) ou o papel de avó (no qual desconhece ao certo onde se situar)? A transformação operada pela cessação/finitude do papel de mãe (relativamente à nova criança) e nascimento de um novo papel de avó, provavelmente não despojará mas enriquecerá verdadeiramente esta mulher, o neto e os seus pais. A minha avó foi uma enorme referência para mim a par da minha mãe. 
A terceira tonalidade da finitude prende-se com o que designamos habitualmente por limite. Além de todo o potencial que temos e daquele a que é lícito aspirar e perseguir, como canta a Pedra Filosofal de António Gedeão, a humanidade é marcada por contingências. A par disto, os estereótipos que cada sociedade elege como o desejável (nas mais diversas áreas) colocam-nos o problema da distância que existe entre a nossa realidade e esses estereótipos. Encontramos ‘heróis’ ao nível físico, psicológico, intelectual, social e até religioso... Neste campo formam-se expectativas relativamente ao que queremos de e para nós e os outros (se valorizo determinada característica que não encontro em mim - por mais que me esforce - ou no outro - por mais que lho solicite – tendo a entrar em guerra). Não ser, ter e gozar de tudo quanto anseio revela-se uma propriedade da minha natureza que me custa a digerir. É dura a complementaridade: ter de precisar dos outros, ter de ajustar aos seus interesses e ritmos, não possuir todos os trunfos… mas a própria natureza se organizou numa admirável e desconcertante interdependência. Urge ter consciência e sabedoria sobre os nossos limites. 
Assim pretendo aludir à finitude como processo inerente a ciclos, transformação e limite.
A esta altura o leitor pode dizer: “Mas que tem isto a ver com homens e mulheres numa Igreja serva e pobre?” No meu entender, muito. Passo a explicar.

Igreja Serva 
Mateus, no capítulo 20, relata um discurso de Jesus onde se ouve: “Sabeis que os chefes das nações as governam como seus senhores, e que os grandes exercem sobre elas o seu poder. Não seja assim entre vós”.
Desde a mais tenra idade queremos ter uma palavra a dizer, que nos considerem, que o nosso contributo seja válido e reconhecido como tal. E isso é saudável. A questão é: A que preço? Ao preço da morosidade que leva a alcança-lo com os outros ou ao preço da desumanização que leva a alcança-lo contra os outros. O Ser-com (comunhão) está longe de ser uma experiência romântica e implica muita  e obras para que se permaneça no seu exercício. Ser-contra parece um caminho mais rápido e, presumivelmente, eficiente. No mesmo relato Jesus continua: “Quem entre vós quiser fazer-se grande, seja o vosso servo; e quem no meio de vós quiser ser o primeiro, seja vosso servo”. Jesus não moraliza nem destitui o anseio por ser grande ou primeiro, mas muda-lhe a direcção. Aliás, a venerada Elizabeth Leseur concorre ao dizer: “Uma alma que se elevaeleva o mundo inteiro”.
Retomo as palavras que descrevi antes, começando pela última - finitude. Quão grande me permite ser a minha finitude? É interessante perceber que nos grupos, inclusive de carácter religioso, se pedirmos ajuda para um trabalho a resposta é habitualmente positiva (há alguém generoso ou disponível que aparece); se pedirmos algo que implique um esforço extraordinário como trabalhar roubando horas ao descanso também a resposta é possivelmente positiva (se a proposta for convincente); mas se se pede para dar o lugar, espaço ou a vez (sem que isso implique demissão) a resposta custa mais a sair. A saída de cena (parcial/total, pontual/definitiva) é algo difícil de conciliar com valor, particularmente, pessoal. Porventura entendemos a cedência como uma ameaça onde ao sair não se vislumbra o regresso (Mistério Pascal!). E não falo em questões de idade, género, escolaridade ou em quantas categorias nos queiramos encaixar, falo de fraternidade num determinado momento em que alguém dá lugar a outro por pertinência ou amor (ex. uma criança da catequese que sabe responder e deixa ser outra criança a dar a resposta). 
Uma imagem que talvez traduza esta dinâmica é a execução de uma peça de música. Nela é notória a complementaridade e a necessidade de os instrumentos ora destacarem/ mesclarem o seu som ora reduzirem/silenciem a sua prestação para de novo voltar a emergir mais adiante… Nesta imagem, a beleza nasce da alternância de realce entre os diferentes grupos de instrumentos, no intercalar entre som e pausas, na coordenação dos diversos músicos num vai e vem de protagonismo e penumbra cuja cadência oscila a um ritmo cambiante. A flexibilidade presente na imagem oferece um modo harmonioso de serviço. Esta consciência ajuda a desarmar a disputa milenar entre “eu” e os “outros” ou entre “nós” e “eles” (que a psicologia social/sociologia descrevem como fenómenos ingroup e outgroup) para a qual Cristo alerta: “Não seja assim entre vós”.  

Igreja Pobre
“Felizes os pobres em espírito porque deles é o Reino do Céu” (Mt 5,3). Tal como a finitude, a pobreza está sujeita a inúmeros entendimentos. Consciente de estar a ser terrivelmente reducionista, arrisco a sintetizar a pobreza como uma atitude de abertura e a riqueza como uma atitude de fechamento (em diversas frentes: vida, perdão, relação com os outros, fé, conhecimento, etc.). Bento XVI, na sua visita a Portugal em 2010, falava de uma “Igreja discente”, aprendiz, capaz de respeitar outras verdades, consciente de que tem caminho para andar e precisa dos outros que precisam dela. É nesta linha que percebo os pequeninos e os humildes que tanto cativam a Cristo. Qualquer classe social, grau académico, história pessoal pode enveredar por atitudes de abertura (e nela a receptividade, a empatia, o diálogo, o encontro) ou fechamento (e nele a distância, a auto suficiência, o preconceito, a defesa).  
Há pouco tempo um amigo meu, a quem a vida despojou, de uma assentada, da saúde (grave e irrevogavelmente) dos familiares mais próximos e da esposa (ficando a responsabilidade profissional, os compromissos e os filhos pequenos) dizia em soluços: “Isabel, sinto-me tão pequenino… sinto-me tão pequenino!” Ficar sem tapete, sem chão e sentir-se como Pedro nas águas do mar da Galileia: “Salva-me, Senhor!” (Mt 14,30). Apesar dos nossos recursos, convicções e meios, há alturas em que a força da tempestade é tão violenta que nos expõe toda a finitude e nessa altura conhecemos a vida de uma outra maneira nova. Deixa de importar a auto suficiência, o orgulho pessoal é destilado (ficando a dignidade em estado puro), a mão que se estende é bem-vinda (e o suporte recebido será posteriormente dado a outros num espírito completamente novo). 
Guardar uma vivência, seja ela dramática, feliz, de abnegação, perseverança ou festa dá todo um corpo e autoridade à palavra (significante). E desconfio que não é preciso procurar vivências pois elas saltam-nos no caminho de todos os dias. É só estar aberto (coração pobre) a receber, compreender e dialogar com os acontecimentos à luz da fé, da esperança e do amor. Uma vez assumidas, estas experiências transformam, paradoxalmente, em infinitamente pequenos e magnanimamente grandes os que as encarnam.
A Igreja pobre e serva tem consciência da sua finitude (simultaneamente lugar de pequenez e de grandeza); reconhece o valor da sua identidade (recebida de Trindade) a par da sua condição de interdependência (recebida da Humanidade); está ciente do seu lado lunar (recorrendo à expressão de Rui Veloso) e da sua pérola (Reino do Céu); insiste em recuperar ao fundo a Figura de um Deus tão presente, tão habitual que se arrisca a esvair-se da atenção (enquanto significado); permanece aberta ao Espírito nos caminhos que trilha de Jerusalém para Jericó (Lc 10, 29), para Emaús (Lc 24,13) ou para a Galileia (Mt 28,7).


Isabel Balbino, fmm

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