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"Igreja em Saída" - Jorge Wemans [4ª Conferência de Maio]

Transmissão daFé numa Igreja em Saída
A Exortação Apostólica A Alegria do Evangelho é tão rica, profunda e inspiradora que em vez de lhe acrescentar comentários e muitas palavras minhas preferi, para tratar o tema que me propõem, fazê-la falar. Por mim faria uma aclaração inicial, depois procurarei na Exortação respostas para três interrogações. Transmitir a fé: A quem? Como? Onde buscar motivação? 

A que domínio pertence a transmissão da fé? 
A aclaração é esta: a expressão “transmissão da fé” induz-nos facilmente em erro. Tomamos “transmitir” pelo seu significado de transferir, de mandar de um lugar para outro, quando o que aqui está em causa é apenas divulgar, difundir, enunciar. A fé é dom, graça, obra de Deus em cada um de nós. Nenhum de nós, por mais que o deseje, (ou, na nossa terrível pesporrência, se sinta para tal encartado), pode substitui-Lo no mistério de seduzir o coração do irmão, irmã, para que este, esta, se reconheça como filho, filha, de Deus. 
A economia da “transmissão da fé” é, assim, de natureza oposta à do discurso económico dominante, pai e filho do pensamento único, ou de outras teorias económicas induzidas por outros espíritos. Não nos mobiliza para equacionarmos a relação investimento versus retorno, as performances, a competitividade, ou subjugarmo-nos à exclusiva orientação para os resultados. A “transmissão da fé” é um processo, uma realidade, de outro domínio, de um outro mundo. Pertence ao universo das coisas que são verdadeiramente importantes. Coisas pelas quais cada um de nós e todos nós somos inteiramente responsáveis, embora não controlemos o seu desfecho, os seus resultados. Não é assim na educação, na luta pela condução da polis, na amizade, no amor? Em todos eles nos é recomendada a humildade dos servos inúteis: entreguemos-lhes o melhor de nós mesmos, mas sem a ilusão de querer controlar a que porto chegaremos. 
Esta é uma experiência que deveríamos amadurecer na nossa intervenção cívica e na nossa vida ativa em geral: sentirmo-nos completamente responsáveis por processos cujos desfechos não dependem apenas de nós. Mais convicção, menos calculismo. 
Refletir sobre a “transmissão da fé” é, pois e antes do mais, interiorizar o que ela exige de nós: máxima humildade, inteira responsabilidade, total gratuidade, enorme alegria. 

Transmitir a fé: a quem? 
Basta ler com atenção o nº14 da EG. Transmitir a fé, evangelizar, encontra um primeiro nível que diz respeito aos fiéis. Um outro círculo diz respeito aos batizados distantes da comunidade, “os que não sentem uma pertença cordial à Igreja”. Mas a evangelização “está essencialmente relacionada com a proclamação do Evangelho àqueles que não conhecem Jesus Cristo ou que sempre o recusaram”. “Todos têm o direito de receber o Evangelho. Os cristãos têm o dever de o anunciar, sem excluir ninguém, e não como quem impõe uma nova obrigação, mas como quem partilha uma alegria, indica um horizonte maravilhoso, oferece um banquete apetecível. A Igreja não cresce por proselitismo, mas «por atração»” (nº14).
“Mas, a quem deveria privilegiar? Quando se lê o Evangelho, encontramos uma orientação muito clara: não tanto aos amigos e vizinhos ricos, mas sobretudo aos pobres e aos doentes, àqueles que muitas vezes são desprezados e esquecidos, «àqueles que não têm com que te retribuir» (Lc 14,14). Não devem subsistir dúvidas nem explicações que debilitem esta mensagem claríssima. Hoje e sempre, «os pobres são os destinatários privilegiados do Evangelho», e a evangelização dirigida gratuitamente a eles é sinal do Reino que Jesus veio trazer. Há que afirmar sem rodeios que existe um vínculo indissolúvel entre a nossa fé e os pobres. Não os deixemos jamais sozinhos!” (nº48).
É isso mesmo: não vale a pena comentar esta mensagem claríssima. 

Transmitir a fé: como? 
Socorro-me do nº 24 da EG. “A Igreja «em saída» é a comunidade de discípulos missionários que «primeireiam», que se envolvem, que acompanham, que frutificam e festejam. Primeireiam – desculpai o neologismo –, tomam a iniciativa! A comunidade missionária experimenta que o Senhor tomou a iniciativa, precedeu-a no amor (cf. 1Jo 4,10), e, por isso, ela sabe ir à frente, sabe tomar a iniciativa sem medo, ir ao encontro, procurar os afastados e chegar às encruzilhadas dos caminhos para convidar os excluídos. Vive um desejo inexaurível de oferecer misericórdia, fruto de ter experimentado a misericórdia infinita do Pai e a sua força difusiva. Ousemos um pouco mais no tomar a iniciativa!” (nº 24). 
Esta é, no meu entender, uma das grandes novidades da Exortação, do pensamento do papa Francisco. Ele substitui o método do ver-julgar-agir por outro: tomar a iniciativa – envolver-se – acompanhar – frutificar – festejar. Este processo em cinco momentos tem o seu instante fundador no tomar a iniciativa. Ir ao encontro dos afastados e dos excluídos. Se queremos participar no processo de transmissão da fé devemos colocar como ação primeira, essencial, tomar a iniciativa de ir ao encontro. Iniciativa comunitária e iniciativa pessoal. A revolução de Francisco é muito esta: não complicar o discurso com a construção de conceitos difíceis, procurando responder a tudo e todos. Não, não é a isso que o Papa nos convida. Ele aponta com clareza e convicção o que é essencial, primeiro, prioritário. Tudo o resto virá por acréscimo e em função desta essencialidade matricial.
 A este caracter incisivo, transparente e sem lugar para tibiezas, dúvidas, ou segundas interpretações deve a Exortação muitos dos comentários que a procuram menorizar, ou fingir que nada de novo ela traz. 
Novo aqui é o movimento primeiro da “transmissão da fé” que Francisco afirma. O essencial dela não é o discurso, a crítica, o exemplo, o convite, o “vinde cá”. O lugar onde tudo deve começar é “lá”, é a iniciativa no sentido de “ir ao encontro”. Será nesse encontro que aprenderemos a nos envolver com os afastados e os excluídos, a acompanhá-los, a reconhecer os frutos desse encontro e a festejar cada pequena vitória. No princípio não há grandes análises, magníficos planos, elaboradas técnicas. Há, sim, a decisão de tomar a iniciativa de sair à procura do irmão afastado. A partir dele e do nosso encontro com ele acharemos o modo de ser com ele, de ser como Ele. 

Transmitir a fé: com que motivação? 
Valho-me do nº 264: “A melhor motivação para se decidir a comunicar o Evangelho é contemplá-lo com amor, é deter-se nas suas páginas e lê-lo com o coração. Se o abordamos desta maneira, a sua beleza deslumbra-nos, volta a cativar-nos vezes sem conta. Por isso, é urgente recuperar um espírito contemplativo, que nos permita redescobrir, cada dia, que somos depositários de um bem que humaniza, que ajuda a levar uma vida nova. Não há nada de melhor para transmitir aos outros.” (nº 264). 
A motivação não é pois a da conquista das almas ou do crescimento do número para se manterem, ou aumentarem, poderes e preponderâncias. Não. Trata-se de partilhar algo que é bom, que nos faz bem, que é uma Boa Nova e que pode ajudar outros a levarem uma vida boa. 

Metodologia para o sínodo do Patriarcado 
Deste modo de entender a transmissão da fé, decorrem, por exemplo, consequências muito diretas para o modo de realizar o sínodo convocado por D. Manuel Clemente para o Patriarcado no horizonte de 2016. 
 Tenho defendido que o sínodo deve centrar-se numa agenda com quatros eixos: 1) acolher e integrar; 2) cuidar dos pobres e tomar a palavra com eles e em seu nome; 3) realizar a democracia interna, fomentar a participação de todos; 4) viver e comunicar a alegria da esperança. 
Mas aquilo a que Francisco nos convida é a seguir o seu método, isto é, a tomar a iniciativa de ir ao encontro. Deste ponto de vista, devemos começar por ouvir os afastados e os excluídos desta diocese (e quem em seu nome nos possa falar) sobre o que esperam das comunidades de crentes que habitam o território do Patriarcado. Temos de provocar essa audição dos de fora, dos das margens, sem o que estaremos condenados ao fracasso, independentemente da bondade das nossas intenções. 
Aproveito para desafiar o CRC a envolver-se nesse movimento que é preciso criar para ouvirmos aqueles que estando bem perto de nós (espacialmente) estão, todavia, nas margens a que Francisco nos convida a ir, a dedicar-nos. Temos de, por vários meios e múltiplas formas começar por ouvi-los. Assim criaremos os fundamentos necessários a tudo o resto que um Sínodo pressupõe. 

Lx. 14-06-04, Jorge Wemans

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