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O Papa Francisco e o Inquérito sobre a Família [Emília Nadal]



A decisão do Papa Francisco de publicar o documento preparatório do Sínodo dos Bispos sob a forma de um inquérito, teve repercussão mundial. Este fenómeno por si só encerra um vasto conjunto de questões, motivo pelo qual nos encontramos hoje a reflectir sobre alguns dos seus aspectos.
Como simples observadora, procurarei sintetizar, em curta intervenção, dois planos que se interpenetram.
São eles: o contexto em que surge a iniciativa do Papa. O alcance de um Inquérito centrado no tema da Família. 

1- O contexto em que surge a iniciativa do Papa

Após a renúncia do Papa Bento XVI, percepcionada como imagem simbólica de um modelo eclesial esgotado, seguiu-se a percepção de que o Papa Francisco dava início a um tempo novo. A auto-dessacralização da figura pontifícia colocando-se num plano de igualdade fraterna, em comunicação aberta e humanizada, configuraram o Papa argentino com uma nova era na Igreja Católica. A inusitada proximidade papal provocou desconforto em alguns sectores, garantindo redobrada audiência de um público conquistado pelo discurso simples e assertivo do Papa, bem como pelo seu à-vontade em conviver com realidades circundantes, centrando as suas mensagens no Evangelho e na misericórdia de Deus, em termos existenciais.

De surpresa em surpresa, a publicação do Inquérito que o Papa posteriormente decidiu alargar a toda a Igreja, convidando o Povo de Deus a responder e a participar, veicula também uma mensagem. Demonstra que a originalidade do modo de actuar de Jorge Bergoglio não se confina a uma personalidade simpática ou à sua cultura e biografia, sendo objectivamente expressão de uma nova ecleseologia.
A proposta de um inquérito, tão concreto e detalhado, destinado a conhecer e a avaliar (em vez de doutrinar) o que todos os outros possam pensar (inclusivamente os leigos, principais destinatários da acção pastoral exercida por padres e bispos nas paróquias e nas dioceses), parece indicar que o actual pontificado decidiu reabilitar o sentido e a função do próprio Sínodo, uma instância que foi criada para garantir o exercício efectivo da colegialidade dos Bispos, a sua co-responsabilidade e participação no governo da Igreja.

A coragem renovadora do Papa Francisco corresponde, actualmente, à coragem do Papa João XXIII quando 50 anos atrás, decidiu, de motu próprio, convocar um Concílio Ecuménico para conhecer a realidade do mundo contemporâneo e, a ele, adequar a missão da Igreja.
O Inquérito do Papa Francisco centrado na Família, que se espera seja discutido pelos representantes de todas as Conferências Episcopais no próximo Sínodo, corresponde a maior urgência ainda, quer pelo agravamento das situações, quer pela necessidade de concretizar o que ficou por fazer, devido à entropia do sistema eclesiástico, e corrigindo um percurso que, em vez de progredir na conversão daquele, contribuiria para a burocratização da Igreja e para a regressão a um governo mais centralizador e securitário.
Estamos assim perante uma decisão profética do Papa Francisco que simbolicamente inicia o caminho para a realização efectiva das mais importantes orientações preconizadas pelo Concílio Vaticano II: a passagem da concepção piramidal da Igreja à concepção da Igreja como povo de Deus abrindo as portas à escuta das comunidades e à realização da Comunhão.

2- O alcance de um Inquérito centrado na Família.

Exceptuando as Encíclicas papais, de um modo geral, o tema Família tem sido entendido como um tema lateral ou secundário, um capítulo específico e circunscrito da sociologia e uma alínea da pastoral. Referenciado a modelos bíblicos e rurais, associando o conceito de ordem natural à imagem simbólica da Sagrada Família, o discurso doutrinário e pastoral apresenta um conceito simultaneamente determinista e idealista de Família, como uma forma estanque à qual se deve conformar toda a realidade humana, apesar da sua diversidade.
Nos termos em que é promovido o próximo Sínodo, e no contexto de uma ecleseologia mais participativa, a questão da Família poderá adquirir um novo sentido e maior densidade. Um sentido mais social e humanizado, e uma concepção integradora das várias dimensões da existência humana. 
O Papa Francisco tem demonstrado que a sua prioridade é ir ao essencial: Jesus Cristo e o testemunho da misericórdia de Deus na existência das pessoas concretas que nascem, vivem e morrem na complexa realidade do mundo que é basicamente constituído por famílias de inúmeras e diversíssimas culturas. Estas são o terreno onde se cruzam todas as situações possíveis, e onde coexistem o melhor e o pior da natureza humana; são o primeiro palco de todos os conflitos que marcam as relações pessoais e sociais. É nelas que evoluem as mentalidades e se definem e transmitem as culturas e os valores. É através das famílias que se transmitem a fé e a cultura cristãs, as práticas religiosas, ou a ausência delas.
A diversidade dos temas e das questões de ordem antropológica e sócio-cultural que percorrem o Inquérito, leva a concluir que a questão da Família é básica e não transversal, pelo que deveria constituir o fulcro, e não uma alínea, da acção pastoral.
O Inquérito do Papa Francisco é um instrumento para avaliar o grau de prioridade e de atenção pastoral dispensados pelas Igrejas locais às questões da família, e às famílias concretas que, na sua diversidade humana, cultural e religiosa, são células base da sociedade e células base da própria Igreja.

A extensão e dureza do Inquérito propõem aos Pastores um verdadeiro exame de consciência sobre a acção desenvolvida e, principalmente, sobre os seus efeitos.
Propõe uma avaliação dos processos de comunicação do pensamento da Igreja, dos princípios da doutrina moral e dos conceitos relacionados com um ideal de família cristã; e a avaliação dos métodos e dos processos de comunicação daquelas doutrinas, assim como a resposta que é dada pelos fieis e pela cultura das sociedades envolventes aos ensinamentos da Igreja.
O Inquérito veio permitir que, pela primeira vez, os destinatários da pastoral dirigida ao matrimónio e à família pudessem fazer a sua própria avaliação em questões que lhes dizem respeito.

Impor a necessidade de uma discussão aberta na Igreja sobre temas tão realistas e sensíveis, como o dos divorciados e da contracepção, da homossexualidade, da adopção e da união de pessoas do mesmo sexo, é um desafio que poderá contribuir para que as instâncias eclesiásticas desçam das alturas e aterrem na humanidade, enfrentando colegialmente, e em liberdade evangélica, as questões que se apresentam.

A responsabilização dos Bispos pela difusão do Inquérito nas suas igrejas particulares, vem na sequência dos sinais que indiciam o desejo de Francisco de provocar uma conversão nos métodos e nos modos de relacionamento intra-eclesial. Haverá muitas diferenças no grau de empenho naquela difusão, na possibilidade de participação nas capacidades de resposta, nas metodologias de recepção e de estudo de respostas ao Inquérito. Aquelas diferenciações, e o modo como poderão reagir alguns pastores a respostas e observações dos fiéis, serão indicadores importantes do estado e da vida das comunidades.
Na Diocese de Lisboa o Inquérito foi publicado pela Net em forma de questionário detalhado e por vezes parecendo induzir respostas, particularmente no capítulo em que se evidenciam algumas obsessões referidas pelo Papa. A divulgação do site possibilitou participações de dentro e de fora do país, mas acentuou a marginalização da maioria que não possui aquele meio de informação e comunicação.   
A nível local ou internacional, será irrealista esperar grandes resultados no que se refere à participação dos fiéis no Inquérito, aos métodos de análise e de seriação das respostas, e da síntese das respectivas conclusões. O mais importante é o sentido do Inquérito em si mesmo e a sua realização num contexto eclesial fechado, em que as comunidades nunca foram autorizadas a pensar ou estimuladas a intervir, nem mesmo em questões próprias da vida dos leigos e das famílias.

O Papa mostra-se empenhado numa evangelização da Igreja a todos os níveis. Uma evangelização verdadeiramente evangélica nas palavras e nos gestos, que desafia os legalismos do sistema e das estruturas eclesiásticas. Ao decidir alargar o seu inquérito, o Papa Francisco apela ao comum sentir dos fiéis, à opinião pública cristã e não cristã que o segue através dos media e o apoia nas redes sociais; apela a uma conversão, necessária à própria sociedade, enquanto revela o sentido da missão da Igreja no mundo e torna assim credível o seu anúncio de Jesus Cristo como Salvador da humanidade.

Emília Nadal,
15 de janeiro de 2014
 

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